terça-feira, 23 de junho de 2009

O tal do diploma

A derrota da exigência de formação superior específica para o exercício do jornalismo não chega a ser uma surpresa. O placar - 8 a 1 - foi talvez mais elástico do que o previsto, mas o resultado do jogo era previsível. É o desfecho de uma campanha iniciada há cerca de 25 anos pela "Folha de S.Paulo" e que, posteriormente, foi adotada por outras empresas. Mesmo entre a categoria, muita gente boa passou a condenar a limitação para o exercício profissional estabelecida em lei.

Alguns fatores foram decisivos para a vitória. O Ministério Público, autor da iniciativa de questionar a exigência do curso específico, soube usar uma tese canhestra, porém de grande impacto: a liberdade de expressão não poderia ser limitada. O argumento é falho, quem exerce o jornalismo sabe que não somos pagos para dar opinião. O decreto-lei hoje derrubado não impedia que profissionais de outras áreas se manifestassem em jornais e revistas. É só conferir as páginas de opinião para se comprovar isso.

A "Folha", além de levantar a lebre, teve também uma grande sacada ao batizar a campanha. O jornal não falava em formação profissional específica, mas em diploma. Soube reduzir o assunto a um aspecto cartorial, à posse de um canudo. Ter ou não ter o papel passou a ser a questão. Explorou também o caráter supostamente discriminatório da exigência, um argumento falacioso: universidades foram feitas para democratizar conhecimento. Não sei se eu, suburbano, filho de um contador e de uma dona de casa, teria conseguido chegar a uma redação de jornal se não tivesse cursado uma faculdade específica. A exigência legal - não apenas ela, claro - ajudou a profissionalizar o exercício do jornalismo, a democratizar suas portas de entrada. A formação que tive na universidade não chegou perto do ideal, mas foi a melhor que poderia ter tido, era a única - formal ou informal - que estava ao meu alcance. Não era parente ou amigo de jornalistas, não tinha qualquer pistolão. O curso universitário serviu como uma credencial para que eu pudesse ser recebido na primeira redação em que entrei para pedir um estágio. Isso ocorreu comigo e com muitos e muitos colegas.

A questão corporativa foi muito explorada. Isto, como se apenas os jornalistas tivessem essa postura. Em nenhum momento, se questionou a exigência de formação específica superior, assegurada por lei, para o exercício de outras profissões. Há reserva de mercado para arquivistas, economistas, profissionais de relações públicas, bibliotecários, secretários executivos, economistas domésticos. E, claro, para advogados: de acordo com Estatuto dos Advogados, criado pela própria corporação e que virou lei, uma pessoa não formada em direito não poderá sequer fazer a prova da OAB que o habilitaria a conquistar o direito de advogar. Mas não ouvi ninguém falando em acabar com a exigência de diploma para secretários executivos ou economistas domésticos.

Um bom argumento também foi o da vocação, como se não houvesse médicos, engenheiros, químicos e advogados vocacionados. No caso dos jornalistas, a vocação seria suficiente para um bom profissional.. Não faltam, claro, exemplos de ótimos jornalistas não-formados em universidades. Pessoas vocacionadas, que tiveram sim uma formação específica, dentro das redações. Um processo ainda mais restritivo que o dos cursos de jornalismo. A universidade, insisto, democratizou essas oportunidades.

Nessa questão da vocação, o curioso é que só se falava nos grandes jornalistas sem-diploma. Nos ótimos exemplos de grandes profissionais que nunca cursaram jornalismo. Profissionais que se constituem mais em exceção do que em regra. Os defensores do fim do curso específico não trataram dos picaretas que enchiam redações, dos repórteres graneiros, coniventes com a polícia, com os políticos que lhes permitiam acumular o emprego no jornal com uma sinecura em alguma repartição pública. Nelson Rodrigues - um grande jornalista sem-diploma - soube retratar muito bem alguns dos péssimos profissionais com que conviveu. Insisto também: a exigência do curso específico ajudou no processo de profissionalizaçã o da imprensa exigido pelo próprio desenvolvimento social.

A goleada no Supremo também pode - desconfio - ser atribuída à crescente má vontade do judiciário com os jornalistas. Antes intocáveis, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores passaram também a ser alvo de matérias. O relator do caso no STF, ministro Gilmar Mendes, foi um dos que tiveram muitas atitudes questionadas por jornalistas. Pode ser - pode, é apenas uma ilação - que isso tenha contribuído para a goleada. Juízes devem ser justos, mas sempre serão humanos.

As entidades representativas dos jornalistas também têm um papel relevante no resultado da votação. Elas, em momento algum, reconheceram a, de um modo geral, péssima qualidade dos cursos de formação profissional. Aferraram-se à defesa ampla, geral e irrestrita do diploma (sim, adotaram a denominação patronal para a questão) e não tiveram jogo de cintura para reconhecer os sinais de mudança. Mudança na correlação de forças e na própria sociedade. A internet confundiu os papéis, os jornalistas perderam o monopólio de informar - ninguém precisa de registro profissional para abrir um blog. Esse fenômeno foi ignorado. Procurou-se apenas bater pé pelo diploma e, se possível, ampliar sua exigência para outras funções nas redações. Pior: há alguns poucos anos, a Fenaj apresentou um projeto de criação de um conselho profissional mais preocupado em punir jornalistas do que em incentivar a qualificação e o bom exercício profissional. Não podia dar certo.

A Fenaj e os sindicatos de jornalistas também erraram ao não admitir a possibilidade de criação de cursos de pós-graduação que possibilitassem a concessão do registro de jornalista a profissionais formados em cursos superiores de outras áreas. Isso seria benéfico para a categoria, para os veículos, para o público. Isso também contribuiria para pressionar os cursos de graduação em jornalismo, que perderiam assim seu monopólio.

E agora? Acho que haverá poucas mudanças nas redações sérias. Por pior que sejam as faculdades de jornalismo, é melhor contratar alguém que, pelo menos, se mostre animado em seguir uma profissão tão esquisita e que já domine alguns de seus fundamentos. Em seu livro "Os jornais podem desaparecer?", Philip Meyer diz que, nos Estados Unidos, 79% (cito de cabeça) dos jornalistas que trabalham em redação são formados em jornalismo. Muitas faculdades de jornalismo devem fechar - o que é ótimo, a maioria nem deveria ter sido aberta.

Imagino que as consequências mais graves ocorrerão no serviço público. Com a desregulamentaçã o absoluta, pode ser que voltemos à situação criada há alguns poucos anos, por esta mesma ação agora julgada em definitivo: qualquer pessoa - qualquer uma, mesmo que analfabeta - tinha o direito de requerer seu registro de jornalista. Se a lógica permanecer, será fácil preencher vagas de jornalistas com os apadrinhados da vez - isso, insisto, principalmente no serviço público: empresários não gostam de jogar dinheiro pela janela.

Enfim, não vejo grandes motivos para lamentar ou comemorar. Acho que teremos uma experiência interessante pela frente. E torço para que a sociedade brasileira - e aí incluídos seus meios de comunicação - se mostre disposta a lutar contra outras reservas de mercado no país. Até para não pegar mal, para não parecer perseguição.


...


Recebi esse texto do meu pai, por e-mail. É do Fernando Molica, jornalista diplomado, da Itaipu, imagino, publicado em 17 de junho de 2009. É comprido, mas é muito bom.
Passado o susto, acho que chega de polêmica...

Um comentário:

  1. Sabe Paula também concordo com você e com o Fernando. Acho que agora é hora de vermos o lado bom da situação. Quem vai querer fazer faculdade? Ninguém. O mercado vai ter tanto jornalista que daqui a 5 ou 10 anos eles vão ter que regulamentar de alguma forma o exercício da profissão e certamente será para quem tem diploma. Vamos torcer.

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