A casa tinha dois andares, além da edícula nos fundos. Ela gostava mais quando a edícula não existia e no fundo da casa tinha um parquinho, que dividia com as outras quatro casas vizinhas, onde ela, a irmã e as amigas sempre brincavam. Uma vez elas estavam no balanço quando o irmão, recém-nascido, chorou alto. Alto mesmo, tanto que, lá do parquinho, ouvia-se o choro da criança que acabara de acordar. Assustada, ela pediu à amiga que chamasse sua mãe, que conversava com a mãe da amiga durante a sesta diária do filho. Enquanto a mãe não chegava, ela não podia deixar o irmãozinho chorando. Correu para ver o que havia acontecido.
Ao chegar ao quarto, o menino já estava vermelho. Ela lembrou do ritual que a mãe seguia para descobrir o motivo do choro. Primeiro, verificar as fraldas. E foi o que fez. Estava ali o problema. Acalmou o irmão e decidiu trocar a fralda. Sozinha, aos seis anos de idade. Limpou o irmão, jogou a fralda suja no lixo e então a mãe chegou. Naquela noite foi dormir se sentindo heroína. Sentia ter salvado o irmão.
E foi na frente da casa, na rua de cascalho de pouco movimento com bueiros enormes a céu aberto, é que ela aprendeu a andar de bicicleta.
- Não larga, pai, senão eu caio!
- Não vou largar, filha.
E pedalava, acostumando-se com o equilíbrio que o corpo dava à bicicleta sem as rodinhas. E o pai segurava onde outrora ela ia na garupa.
- Não larga, pai.
...
- Não larga, tá, pai?!
...
- Pai?
Foi quando virou e percebeu que o pai acenava, longe, para ela, enquanto comemorava os poucos metros que a filha pedalara sozinha. Nervosa com a ausência das rodinhas, ela caía. O pai, que já havia previsto o nervosismo da filha quando percebesse que estava só e o tombo iminente, já estava em sua direção, para lembrar que é caindo que se aprende a levantar.
Outra vez, no campinho em que os meninos jogavam futebol ao lado, ela e a irmã descobriram um mundo à parte ao ultrapassarem a cerca de arame farpado. Tardes de correria, sem preocupação, de diversão. Juntas, sempre.
O que ela mais amava naquela casa era o seu quarto, que dividia com a irmã. Entre as camas tubulares cor-de-rosa, a casinha de madeirite que era, na verdade, um baú cuidadosamente escolhido pela mãe, para guardar os brinquedos que antes cobriam o chão do quarto. Do outro lado da cama, a porta que a mãe mantinha trancada, mas que ela e a irmã ansiavam por ver aberta. Do lado de lá da porta, uma sacada. Pequena, miúda, que mal cabiam as duas de pé, mas que lembrava, às meninas, a torre dos castelos das histórias de princesa que a mãe contava antes de dormirem. Do lado esquerdo do quarto, o quarto do irmão. Do direito, o dos pais. E, ao lado do quarto do irmão, o banheiro. Ela adorava o vapor que invadia o andar de cima depois que o pai saía do banho e do perfume que se espalhava pela casa. E tinha certeza: aquele era o melhor cheiro do mundo.
Hoje, anos depois de ter ido embora, sonhou com a casa. E nos sonhos era tudo como outrora. Ela era feliz como naquele tempo. Na casa onde não há lembrança de tristezas. Naquela casa, na rua Sebastião Alves Ferreira, 2721.
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ResponderExcluirLindo Paula, eu lembrei da minha antiga casa, onde eu e meu irmão passamos a infância. Lá tenho lembranças que são únicas, como a casa da árvore; as lutinhas entre eu, meu irmão e meu pai; as flores que floresciam somente às 11 horas do dia e as subidas no telhado que rendiam sempre uns bons machucados.Nossa! Muito bom. Lindo.
ResponderExcluirMe emocionou a poesia dos seus sentimentos, minha heroína. Me emocionou partilhar suas lembranças.
ResponderExcluirAmo seus textos.
Amo você.
Filha amada, a saudade daquela casa e principalmente daquele tempo, é tanta que fizeste me emocionar como a muito não me emocionava... E tens toda razão, não há lembranças de tristeza.... e sim de muita felicidade. Talvez, para mim, nunca mais alcançável... Se soubesse, nunca teria concordado com o fechamento do parquinho e construído a edícula... Desculpe-me, também por isto... Te amo....
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